História da Preta Velha Vovó Maria Conga
Para honra e glória de pai Oxalá;
Para honra e glória de São Jorge Guerreiro;
Para honra e glória de Ogum;
Para honra e glória de vó Maria Conga;
Para honra e glória de todas as falanges do Congo;
Para honra e glória de todas as Pretas Velhas,
Hoje, pela primeira vez aqui no blog, vou contar a história de uma entidade que não faz parte das minhas correntes, não é da minha crôa, mas da qual tenho a oportunidade, a felicidade e a honra de camboná-la, de ouvi-la e poder aprender com ela.
É a história da Vovó Maria Conga, uma preta velha conhecida de Norte a Sul do Brasil, principalmente por descer e praticar a Caridade nos terreiros de Umbanda.
As entidades de Umbanda que baixam nos terreiros tiveram uma vida terrena, vida física, carnal, viveram nesse mundo, no Brasil ou não. Com vó Maria Conga não foi diferente.
Segundo os quilombolas cariocas de Magé, Maria Conga nasceu no continente africano, no ano de 1.792. Oito anos depois ela foi trazida para o Brasil pilhada em um navio negreiro, junto com seus pais e irmãos.
Passou primeiro por Salvador, na Bahia, onde foi batizada com um nome cristão de Maria da Conceição aos oito/nove anos de idade. Lá foi vendida a um alemão e em 1.810, aos 18 anos, foi levada para Magé, no Rio de Janeiro, onde chegou através do Porto da Piedade.
Com 24 anos foi vendida novamente a um segundo alemão, dessa vez um Conde conhecido como Ferndy Von Scoilder. 11 anos depois, por volta de 1.854, já com 35 anos de idade, ela é alforriada e assume o compromisso de lutar pela liberdade e dignidade de sua raça.
Maria Conga deixa a Fazenda do Saco Fundo, onde morava e adentra as matas densas e fechadas de Magé. Sozinha ela iniciaria aquele que hoje é conhecido como o Quilombo Maria Conga, um bairro de Magé, reconhecido pela Fundação Cultural Palmares como tal. Com isso, Magé é o primeiro município da Baixada Fluminense a ter um quilombo reconhecido pela Fundação.
Entretanto, há diversos outros quilombos na cidade, ainda não reconhecidos, muitos, inclusive, foram fundados com ajuda de Maria Conga. Pois o que acontece, ao adentrar às matas e ir morar em Magé, Maria Conga passou a abrigar, refugiar e proteger negros foragidos. Isso fez com que, mesmo ela sendo livre, passasse a ser perseguida. Ela esteve em Bongaba, Feital, Petrópolis, Suruí, entre outras localidades.
Porém, ela nunca chegou a ser pega pelos feitores ou pela Guarda Imperial. Ela, uma mulher, tendo vivido as agruras da escravidão, fugia por entre as matas já com mais de 30 anos, por caminhos de pedra, rochosos, atravessava rios e riachos com os outros negros até chegar em outros quilombos ou em locais seguros.
Assim, ela apoiava e fortalecia os quilombos já existentes e deixava negros para que ali, ou iniciassem novos quilombos, ou ajudasse o quilombo que lhes dera guarida nas fugas. Dessa forma também ela podia retornar a um ou a outro quando fosse necessário.
Hoje, muitas vezes nos pegamos em momentos de aflição, de angústia, de conflitos, mas esquecemos que o pior, que a fase mais cruel de nosso povo já passou. Que, se não vivemos em um mundo ideal ou perfeito, ao menos temos bem mais e melhores condições de lutar por isso, graças às lutas e conquistas dos nossos antepassados como vó Maria Conga, lutas essas que trazemos marcadas no corpo, na alma, na memória, no gene e no sangue.
Maria Conga também passou a vida inteira buscando reencontrar seus familiares, o que, infelizmente, não conseguiu. Morreu sem rever seus pais e irmãos de sangue, mas cercada de filhos que a chamavam por mãe e já em seus últimos anos nem deixavam ninguém chegar perto dela como modo de lhe preservar a saúde.
Vó Maria Conga faleceu em 1895, aos 103 anos de idade de uma vida de lutas e conquistas para seu povo.
Espiritualmente falando, hoje Maria Conga é uma falange na Umbanda. Vários espíritos fazem parte dessa falange, descem nos terreiros e se apresentam com o nome de Maria Conga, com o respeito e autorização da primeira Maria Conga. Com isso, quero deixar claro que, se você conhece uma história diferente dessa que está sendo contada aqui, tenha em mente que nem a minha nem a sua estão erradas. Todas estão certas, pois hoje existem várias Marias Congas, cada qual com sua história, mas respondendo diretamente à que começou tudo.
Todo o relato trazido aqui é embasado em pesquisas e estudos. Trarei trechos de dissertações, citações a documentários, entre outros documentos.
É uma das obrigações do Umbandista 2.0 resgatar para preservar a história dos ancestrais, dos antepassados. Saber que a Umbanda não surgiu do nada, que tem História e Fundamento. Que contar essa História é contribuir para a longevidade segura da nossa religião. Que ter referências sólidas é motivo de orgulho e alegria, mas principalmente de aprendizado.
É uma das obrigações do Umbandista 2.0 entender por que é umbandista. Há muitos mistérios na Umbanda, alguns estão sendo revelados ao longo dos anos, outros nunca serão revelados. Diante disso, cabe ao Umbandista pesquisar tudo que for possível, vivenciar a religião dentro e fora do terreiro. Se assumir umbandista, de maneira consciente, saber quando, como e com quem defender a religião, explicar e esclarecer os outros sobre a religião.
Mais abaixo vocês vão ver que vó Maria Conga dava palestras aos negros fugidos que ela abrigava, que ela os conscientizava sobre a importância de se assumir negro, isso já naquela época, há mais de um século atrás. Ou seja, ela tinha uma consciência super avançada para os tempos dela.
O que legitima inicialmente os primeiros estudos sobre a biografia de Maria Conga é uma reportagem feita pelo historiador argentino Dario Navarro, que conheceu um negro no Brasil do século passado que esteve internado no Lar São Vicente de Paula, asilo para idosos de Magé.
Esse homem teria dito ao historiador:
“que Maria Conga não era um mito, era uma realidade e que ela nasceu no Congo. Ela veio pilhada num navio negreiro da costa do Congo pra Magé, mas primeiro ela passou por Salvador, pela Bahia.
Em Salvador ela foi batizada com o nome de Maria da Conceição e logo depois ela foi vendida novamente. Ela chegou na Bahia com 9 anos de idade, depois ela foi adulta já vendida pra Magé, que chegou na Piedade, que também nós temos um quilombo que está em fase de reconhecimento na Piedade que é o quilombo do Feital , onde ela viveu por um tempo, que não foi por muito tempo, foi por meses e logo depois ela foi vendida para um senhor que é um conde alemão,, que comprou ela que morou aqui na fazenda do fundo do Saco, que hoje é um presídio agrícola.
Então ela logo depois, ela ainda viveu por muitos anos ainda como escrava e com 35 anos de idade que ela recebeu a alforria dela e quando ela recebeu com 35 anos de idade ela não quis mais ficar na fazenda, ela quis viver a vida dela e foi aí que ela foi pra dentro da comunidade porque é vizinha, o bairro é vizinho e aí era uma mata fechada e ali ela fez a casa dela e ali ela protegia os escravos que fugiam e que conseguiam ir até ela.
Então esses escravos eles nunca foram capturados na história que a gente ouve falar , mas que ela contava da vida dela, ela dava palestra pra eles, ela conversava, falava que ela foi uma escrava, que foi muito sofrida, que ela viveu a vida inteira procurando seus pais, seus irmãos porque quando ela chegou na Bahia, que ela foi separada dos pais e dos irmãos e que ela foi estuprada várias vezes, mas que eles nunca conseguiram tomar a alma dela, porque ela ensinava a eles a não ter vergonha de ser negro, não ter vergonha de dizer que era escravo, ela já fazia o que a gente faz hoje.
Hoje mulheres, temos várias mulheres aí que lutam pela igualdade dos seus direitos, ela já fazia naquela época isso. Ela lutava pelo direito da cidadania e ela lutava pelos direitos dos escravos, ela lutava pelo direito do negro, ela era tudo ali naquela comunidade, ela era parteira, ela era, fazia matos, colhia matos na época que não tinha médicos na comunidade, até hoje não tem , assim era muito longe hospital essas coisas, ela que pegava os matos dela e fazia os remédios pros escravos e assim ela faleceu quando ela faleceu ela já não tava mais, assim dizem que ela foi sepultada no cemitério lá de Bongaba”.
O depoimento acima é de Ivone Bernardo (54), líder do Quilombo Maria Conga, em Magé (RJ). Uma nova Maria Conga, uma Maria Conga dos tempos atuais. Sua fala tem como base os estudos de Navarro e de seu próprio tio, Honório Martins, já falecido, mas que também teve contato com Maria Conga e falou sobre ela em entrevista para um livro, do qual Ivone teve acesso durante uma viagem a Brasília.
A entrevista completa de Ivone pode ser conferida na tese de Mestrado da historiadora Camila Abreu de Carvalho, material do qual me valho para este texto. A dissertação foi defendida em 2016 e o título é Quilombo de Maria Conga em Magé: Memória, Identidade e Ensino de História.
“Segundo Ivone, alguns dos ensinamentos de Maria Conga eram de não se envergonhar de ter sido escravizado, de requerer e lutar por igualdade e por direitos. A líder era uma mulher de muitas faces, pois foi parteira, doutora em ervas, articuladora de movimentos de liberdade e guardiã de um dos poucos bairros que as tropas do Império não destruíram. Maria Conga foi sepultada no Cemitério de Bongaba, cemitério histórico que fica no terreno da capela de Bongaba, Igreja de Nossa Senhora da Piedade do Inhomirim, construção de 1696, sede paroquial da Vila de Inhomirim”.
O trecho acima é da tese Afroinscrições em Petrópolis: História, Memória e Territorialidades, defendida pela pesquisadora Renata Aquino da Silva.
Renata descreve Maria Conga como “articuladora dos movimentos de liberdade e pioneira na urbanização negra”.
“Maria Conga reuniu essas duas temáticas e representa um dos muitos elos entre as cidades, por meio de sua liderança e seu pioneirismo em ter começado o quilombo no Morro da Maria Conga. Essa região foi o ponto de chegada de muitas rotas de fuga de escravizados que a conheciam e lá se abrigavam (GUERRA, 2012)”.
“Como muitos quilombos, o Maria Conga tem uma localização estratégica, pois está próximo ao Porto da Piedade, que tem uma pequena entrada para uma gruta, um grande salão protegido pela estrutura de pedras, onde homens e mulheres se refugiavam do cárcere e, à noite, podiam se comunicar com outros que também se fizeram livres para juntos buscarem alimentos etc. Uma das trilhas dá acesso ao Rio dos Cabritos; e há o relato de uma senhora sobre o uso do curso desse rio como rota de fuga do porto e das fazendas na região da Piedade, onde, segundo esse relato, próximo a um ponto, havia um tronco de martírio para castigar os que não obtiveram sucesso na fuga, e dali o destino deles era um pequeno cemitério, cujas cruzes sofreram ação do tempo e da perversidade de quem as arrancou, mas ficou o testemunho de quem fez dali o último pouso para não crescer vegetação. Há somente uma pequena grama por entre uma vegetação alta formando uma espécie de descampado ou de aviso: é aqui”, diz outro trecho da obra.
Nesse sentido, Maria Conga, sua vida, obra e trabalho se equipara a de diversos outros líderes brasileiros como Antônio Conselheiro, Manoel Congo, Zumbi dos Palmares e da rainha Tereza de Benguela, que no Maranhão liderou o Quilombo dos Piolhos; e ainda de Aqualtune, avó materna de Zumbi, que foi uma rainha no Congo, tendo liderado guerras por lá e aqui ajudou a organizar e formar a República dos Palmares em Recife.
Escrever e contar a história de Maria Conga é parte do processo de reavaliação do papel do negro na história e formação do Brasil. É deixar a todos informados que o negro participou da construção tanto quanto ou mais do que os próprios portugueses colonizadores. É deixar todos informados de que os quilombos são patrimônios do Brasil e que dentre esses patrimônios está o de Quilombo Maria Conga.
Fundar comunidades, mocambos, morros e favelas. Ali viver sem o assistencialismo do Estado, sem direito e sem acesso a direitos básicos como Saúde, Educação, moradia e tantos outros é algo que o negro no Brasil faz desde que foi trazido a força da África para cá.
Em sua dissertação Camila diz que “políticas de patrimônio são políticas memoriais, tornando-se uma retórica de poder, na qual o direito ao passado e a cultura são também direitos políticos de reconhecimento, valorização da identidade e cultura negra na luta pela terra e na melhoria das condições destas comunidades. Nesse sentido o quilombo de Maria Conga pode ser considerado patrimônio relacionado a história da escravidão e de resistência em Magé, um patrimônio que também é um testemunho histórico, mas que infelizmente, por diversas razões encontra-se esquecido”.
A luta iniciada por Maria Conga em 1854 continua até os dias de hoje por outras vias. Hoje os moradores do quilombo Maria Conga, cerca de 180 famílias, buscam maiores incentivos e investimentos públicos para garantir maior dignidade aos herdeiros de Maria Conga. Em 2007, a comunidade foi reconhecida, como dissemos acima, pelo Ministério da Cultura como um dos 24 quilombos do Rio de Janeiro.
Em 1988, a prefeitura de Magé proclamou Maria Conga heroína da cidade em alusão ao centenário da Lei Áurea, que concedeu liberdade a todos os escravos brasileiros.
Em 2020, a Acadêmicos da Rocinha levou para a Marquês de Sapucaí toda a trajetória, feitos e conquistas de Vó Maria Conga, que foi o tema do enredo da escola de samba. O desfile está disponível no YouTube.
G.R.E.S. Acadêmicos da Rocinha — Carnaval 2020
Enredo: “A guerreira negra que dominou os dois mundos”
Autores do Samba: Anderson Bençon, Cláudio Russo e Fadico
Intérprete: Ciganerey
Não se sabe, não se consegue precisar quando vó Maria Conga começou a baixar nos terreiros de Umbanda, entretanto, os agradecimentos por suas curas, seus passes e preces são inúmeros no Brasil.
Saravá pra Vovó!
Salve suas eiras,
Viva seu legado,
Vovó Maria Conga vive!
Eu adorei as Almas!
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É costume vermos Vó Conga chegar aos terreiros curvada, colocar a mão na cabeça e puxar seus pontos.
Minha esposa trabalha com Vó Conga, logo eu sou seu cambone. Certa vez ela me revelou que essa posição se deve a uma passagem de sua vida quando ela estava há dias sem comer e precisou roubar alimento na Casa Grande para não morrer de fome. Só que o feitor da fazenda viu e lhe atirou uma pedra. Para se defender ela colocou a mão na cabeça. Portanto, essa é uma posição de defesa.
Quando ela me contou isso passei tão mal que foi preciso dar passagem a uma das entidades que trabalham comigo para me limpar do sentimento de tristeza e raiva que senti com a revelação.
É comum médium que está iniciando na Umbanda querer a todo custo saber e conhecer as histórias de suas entidades, mas nem sempre estamos prontos para algumas dessas histórias. Precisamos de muito preparo mental e emocional para lidar com essas histórias, tudo isso requer reforma íntima, paciência e tantas outras coisas.
Saravá a todos mais uma vez!
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